O Porto me curou com seus jardins, com o sol que nos faz companhia até as 21h no verão e se despede deixando para trás um espetáculo lilás e rosa no céu. Essa cidade sempre me fez lembrar que existe beleza e alegria em todo canto, pausas no tempo, cafezinhos e uma taça de vinho em cada esquina. Falo na primeira pessoa, mas sei que o Porto (e tantos outros lugares especiais) faz muito por milhares que o habitam. Agora chegou a minha, a nossa vez, de retribuir.
Ver as ruas vazias doeu fundo no coração porque reforça que uma cidade bonita sem as pessoas é um deserto de tristeza, silêncio e solidão. Dói mais ainda ouvir e ler os relatos de quem, como eu, perdeu empregos e teve os planos revirados por uma epidemia que, até pouco tempo, ninguém levava a sério. Não é só sobre a quarentena, serão milhões de desempregados desorientados pelo mundo, quando o corona passar.
Precisamos falar sobre o que significa “ficar em casa” para uma boa parte dos imigrantes de Portugal. Estrangeiros são 95% dos trabalhadores da área de restauração, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), basta olhar ao redor em um café para perceber os sotaques brasileiros e africanos predominantes. Muitos desses profissionais nem sequer tem contrato e agora perderam seus ordenados. Vivem em quartos pequenos, alguns sem janela e com muito mofo, e são até proibidos pelos senhorios de usar a cozinha e outros ambientes comuns da casa. Na maior parte das vezes, estamos longe da família e o conceito de “casa” pode não ser sinônimo de lar.
Foram mais de 50 currículos entregues, com pouquíssimas respostas. Até que um pequeno comércio local me abriu as portas e disse “venha!“. O amor dedicado por aquelas pessoas aos sorvetes artesanais feitos ali, em pequena escala e com ingredientes naturais, foi de aquecer o coração. É uma lojinha de 25 metros quadrados com a porta quase imperceptível para os mais distraídos, no coração do Porto. É sorvete, mas também poderia ser café, bolo, frutas, enfim, tudo que as pessoas têm como meio de sobrevivência em seus pequenos negócios.
Uma semana foi o prazo que levou para que eles tivessem de fechar as portas e eu ficar sem trabalho, novamente, e eles sem chão. A instrução é que ninguém saia de casa, se não for realmente preciso. Precisamos proteger especialmente os mais velhos, que aqui em Portugal são maioria. São eles também as pessoas que estão em isolamento permanente e involuntário há muito tempo e recorriam às pracinhas e filas de mercado para ter um pouco de contato humano – esse item que não dá pra estocar e nos faz tanta falta já agora. Imagina pra eles.
Com isso, muitos de nós estamos isolados, mas não estamos sozinhos. Temos como companhia nossos medos, fraquezas e tudo que, no dia a dia, a gente muitas vezes prefere ignorar. No meu caso, esse “inimigo” é a comida. Me custa muito escrever isso em um mundo em que as pessoas não sabem se terão dinheiro para comer. Eu amo a comida e sou grata por ela, não me levem a mal, por favor. Amo até demais.
Há 3 anos, eu luto por uma relação equilibrada com a minha alimentação. Há 3 anos, frequento academias, corro, nado, faço musculação. Assim, me tornei uma pessoa menos ansiosa, mais feliz. Não me preocupo apenas em vestir um determinado número de calça ou seguir um padrão-desejo – é questão de não perder totalmente o controle sobre a minha própria vida. Sendo alguém que perdeu 60kg e batalha com a obesidade mórbida, estar trancada com um estoque de comida, ansiedade, momentos de tristeza e de saudade de casa, assusta. Não tanto quanto não ter o que comer, mas ainda assim, assusta.
Por motivos diversos sei que muitos outros estão com medo: uma amiga acaba de se divorciar e entrou na quarentena. Como vai superar o coração partido sem sentar ao redor de uma mesa e conversar com gente querida? Como vai controlar as crises de ansiedade e choro que batem à porta?
Tenho colegas que sofrem com a depressão e estão com medo de ficar sem remédio. Outros estão sem dormir porque não fazem ideia de como pagar o aluguel. Há ainda os donos de negócios conscientes, que sentem sobre as costas o peso de não poder arcar com compromissos e com as famílias que deles dependem.
Isso tudo sem falar nas pessoas mais afetadas pela pandemia, as que não têm casa onde ficar, as que estão nas comunidades mais carentes, nas favelas, onde não há água nem para consumo, quem dirá para lavar a mão a todo momento. O coronavírus também é sobre classe social, sobre desigualdade e racismo. No âmbito das preocupações de classe média, ainda existe algum conforto sob o privilégio que nos serve como teto.
Dentro dessa realidade, o que podemos fazer nos nossos microuniversos para passar por esses momentos com menos impacto? Aqui no Porto a maioria de nós está longe da família e isso nos deixa ainda mais frágeis diante do isolamento. Tenho visto exemplos de pessoas que mantiveram a terapia online e sentem-se melhor com isso.
Sugiro que a gente converse, faça chamadas de vídeo com as amigas, tome um vinho com elas. Se esforce para ler aquele livro guardado há um tempão ou para escrever sobre os seus sentimentos e sonhos. Aprenda receitas novas, o Instagram está cheio de chefs fazendo ao-vivos, o @alhofrances é um deles. Os famosos também estão em quarentena, fazem lives diárias e conversam com os fãs, além de mostrar suas músicas e etc.
Tem um talento? Crie formas de dividi-lo: um vídeo de um personal trainer fazendo exercícios no topo de um prédio enquanto as pessoas acompanhavam pela janela, na Itália, viralizou um dia desses. Há muitas plataformas que disponibilizaram de graça cursos online também, como a Udemy.
A terapeuta de uma amiga que, assim como eu tem problemas com compulsão alimentar, deu um conselho útil: não é hora de radicalizar. Seja gentil com você mesmo, tente comer um pouco menos de açúcar, ao invés de se desafiar a ficar totalmente sem consumir doces, por exemplo. Açúcar não é droga, como muita gente insiste em dizer, é comida e precisa ser ingerida com controle.
Faça um pouco de exercício – para muitos, isso já é uma grande vitória. Estamos todos sobrecarregados, preocupados e é normal buscar conforto. Já que não podemos abraçar uns aos outros, que a gente abrace a si mesmo.
Hoje de manhã eu chorei de tristeza para extravasar tudo que estava sentindo: sem emprego, minhas reservas logo vão acabar, não posso voltar agora ao meu país, vou ter que fazer do grande aprendizado de 2020 viver um dia de cada vez (é clichê, mas você consegue?).
Quando levei às mãos ao rosto para secar as lágrimas, lembrei da recomendação: NÃO TOQUE SEU ROSTO! Usei o cotovelo coberto com a manga do pijama, confesso, com um pouco de vontade de rir da situação, e isso me lembrou aquela música da Amy Winehouse:
He walks away
The sun goes down
He takes the day, but I’m grown
And in your way
In this blue shade
My tears dry on their own
Escrevo porque sei que muita gente está no mesmo barco e assim a gente se sente um pouco menos sozinho, nesses tempos sem abraço. Ontem à tarde, a dona do apartamento onde vivo — e os portugueses têm fama de tratar mal inquilinos brasileiros — me escreveu pra dizer que mês que vem não precisamos pagar o aluguel.
Ela, que é a pessoa mais amorosa desse continente, estava preocupada com as três “meninas” que chamam de “casinha” o apartamento 1D. Quando tudo isso passar, não corra para o McDonalds, por favor! Vá matar sua sede diversão na cervejaria local, na pastelaria do seu Manel, na sorveteria da Catarina. Escrevo para dividir com vocês essa esperança e porque tenho a certeza de que o Porto (e tantos outros lugares mágicos), com a nossa ajuda, vai se curar também.
Todas as fotografias foram tiradas por Miguel Nogueira e são reproduções do site da Câmara Municipal do Porto.